Com a invenção do ready-made, Marcel Duchamp introduz, no início do século passado, o objeto cotidiano no campo da arte, expandindo com esse gesto o entendimento do que seja a arte. Trabalhos de artistas contemporâneas como Jenny Holzer (1950) e Barbara Krugger (1945) trazem a marca desta ampliação do campo artístico, deixando os espectadores muitas vezes em dúvida se o que vêem é arte ou design. A obra dessas duas artistas evidencia com clareza como esses domínios se contaminam, se fundem, criando um emaranhado em que a arte contemporânea se apropria do design, sob forma de instalações ou intervenções urbanas.
A arte contemporânea, com sua qualidade de “campo ampliado”, como a chamou Rosalind Krauss, emerge na vida cotidiana sob forma de camisetas, bolsas, cartões postais, letreiros eletrônicos destinados à publicidade, outdoors, assumindo um caráter urbano e buscando um diálogo com a coletividade. Jenny Holzer é herdeira de uma tradição moderna e conceitual que utiliza a palavra como elemento imagético, e dispõe da tecnologia para realizar seus trabalhos artísticos, como letreiros digitais e eletrônicos. Seus aforismos estão tanto em galerias e museus como nas ruas em camisetas e cartazes, conferindo à arte um caráter de objeto urbano, levando-a para o meio da rua e incitando o indivíduo a uma reflexão crítica em meio às coisas do mundo. Este gesto faz com que o design gráfico e a arte formem um corpo único ou mesmo situem-se em uma zona em que não é possível discernir se estamos diante de um domínio ou de outro.
A localização, o sítio passa a fazer parte do conteúdo da obra, do mesmo modo como os objetos específicos da arte minimalista que, utilizando materiais industriais, adota uma estética da rejeição da composição e a simplificação da forma. Os artistas minimalistas trabalham com formas geométricas básicas e modulares, repetidas e seriadas, privadas de conteúdo descritivo; preferem a monocromia, as superfícies inflexíveis, localizando seus trabalhos em espaços que propiciem uma interação com o ambiente, porém por serem muito cerebrais, dificultaram a compreensão do observador comum. O trabalho de Holzer, para além desse vínculo com o minimalismo, está mais próximo da arte conceitual, onde a ideia ou o conceito, trazido de um aprofundamento no caminho da filosofia e sociologia, é o aspecto mais importante, trazendo para a arte a força do conceito pela escrita: “A ideia se torna a máquina que faz a arte” (Sol Lewitt).
Repensando, integrando e intervindo no espaço, muitas vezes o artista contemporâneo prefere expor seu trabalho mesclado ao ambiente urbano externo ao invés de apresentá-lo em galerias e museus. Inserido em lugares de passagem cotidianos, o painel verbo-visual confunde o espectador quanto à natureza do que vê – se é publicidade ou arte – evidenciando o teor mercadológico e reificador em que se transformou a visualidade urbana. Vivendo em um país onde o capital e o valor do consumo exercem enorme fascínio, Jenny é dessas artistas “antropofágicas” e “descoladas” que nada têm de vazio ou ingênuo, pelo contrário, potencializa uma estética sofisticada conectada à sociedade. A série Sobrevivência (1983), feita para área pública, insere na paisagem um objeto impulsionador de reflexão com frases como “Proteja-me do que eu quero” (Protect me from what I want) e “Homens não protegem mais você” (Men do not protect you anymore). Aludindo à questão de gênero, inscreve: “Crie meninos e meninas da mesma forma” pois segundo ela, há diferenças entre homens e mulheres que são boas, mas devem ser educados igualmente para que não exista um abismo entre eles. “Abuso de poder não é novidade”, da série Truisms, surgiu de leituras sobre arte, literatura, marxismo, psicologia, teoria crítica social e cultural, feminismo. Seu objetivo foi tornar públicas as questões do meio intelectual, com o cuidado de simplificar os aforismos para ampliar seu entendimento por um número cada vez maior de pessoas.
Já Barbara Krugger vem de uma carreira como designer de publicidade e seu trabalho artístico traz a herança de uma linguagem estética próxima ao design gráfico e ao anúncio publicitário, com frases em fontes bem legíveis, composições em P&B e vermelho, lembrando a visualidade da vanguarda russa de Alexandr Rodchenko e Vladimir Maiakóvski ou mesmo a Arte Pop. Provocando uma espécie de inquietação com uma crítica mordaz aos condicionamentos sociais, seu trabalho complexifica-se com a inserção da palavra conjugada à imagem fotográfica, alterando as convenções do discurso visual banalizado pela mídia. Ao falar de um ponto de vista feminista, a arte de Barbara preocupa-se com as questões de gênero, a representação cultural do poder, da identidade e da sexualidade, levando-nos a uma reflexão enquanto desafia estereótipos e clichês criados pela sociedade midiática.
Identidade, relações humanas, feminismo, política econômica, mercado de arte, liberdade, democracia, repressão e autoritarismo, problemas sociais, consumismo e materialismo, são temas que Barbara Kruger aborda em seus trabalhos. Dos círculos intelectuais e artísticos para os saguões de metrôs de grandes cidades, a designer-cineasta-artista propõe um diálogo sobre a opressão feminina, o consumismo irrefletido e a superficialidade dos desejos, provocando um forte questionamento sobre as instituições e o poder. A força de seu trabalho está na talentosa colagem de texto-imagem que realiza para suas frases provocantes: “Quem você pensa que é?” (Who do you think you are), “Quem é livre para escolher?” (Who is free to choose?), “Você não é você” (You are not yourself), “Compro logo existo” (I shop therefore I am) são algumas perguntas e afirmações feitas sem rodeios em suas bricollages. Com forte teor político, a arte de Kruger propõe uma reflexão sobre o sistema capitalista, cada vez mais conectado aos valores apelativos do consumo, escravizador-escravizado no próprio corpo como mercadoria, alimentando os recalques da sociedade: “Compre-me. Eu vou mudar sua vida“ (Buy me. I’ll change your life). Por vezes, a artista exalta a palavra conciliadora, como na composição intitulada “A empatia pode mudar o mundo”, em um grande painel numa estação de metrô francesa.
Com o advento da arte mesclada à cultura de massa em trabalhos vanguardistas, desde as colagens dadaístas que utilizavam recortes de jornais, esse campo ampliado da arte enfrenta uma ausência de demarcação nítida entre o que é arte ou design, incitando um questionamento à prática artística no que diz respeito à sua diluição no mundo comum. Essas artistas contemporâneas cujos trabalhos aqui foram comentados trazem uma poética por vezes irônica, chamando a atenção para a ação perniciosa da lógica do consumo que nos anestesia como sujeitos conscientes. Essa tática enfrenta a contradição de desejar o despertar crítico do público para os perigos do consumo excessivo e inserir sua produção no circuito da arte. Como então mudar o valor das coisas diante do impasse em que se encontra a arte? Se nada sobrevive fora do capital, a prática artística não pode estar fora da lógica do consumo. Na contradição entre o sentido e o não-sentido, a arte mantém-se acordada frente às questões que emergem na contemporaneidade.
Sabrina Lopes
Designer gráfica formada em Comunicação Visual pela Faculdade da Cidade (RJ, 1993) e artista visual com Mestrado em Arte, pela UnB (Brasília, 2003).
Referências
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